A Argentina enfrenta uma batalha jurídica em torno dos pagamentos de suas dívidas, que pode levar o país a dar um novo calote em seus credores.
No fim de junho, o depósito de US$ 1 bilhão feito pela Argentina a credores da dívida (que recebiam em parcelas) foi considerado “ilegal” e bloqueado pelo juiz Thomas Griesa, dos Estados Unidos. Os argentinos só podem pagar essa parcela, que vence em 30 de julho, quando acertarem o pagamento a outros credores que ganharam na Justiça o direito de receber o valor integral dos títulos da dívida.
José Maria de Souza Júnior, professor de Relações Internacionais das Faculdades Rio Branco, diz que a disputa é apenas mais uma das instabilidades que a Argentina vem sofrendo desde o megacalote da dívida pública em 2001.
PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE A CRISE
Qual a origem da dívida?
Em 2001, em meio a uma crise econômica e política, a Argentina anunciou um calote em sua dívida pública, que era de cerca de US$ 100 bilhões. As pessoas, empresas e os fundos que tinham títulos da dívida (ou seja, que haviam emprestado dinheiro para o governo) deixaram de receber os rendimentos deles e foram impedidas de resgatar os investimentos. Quatro anos depois, no governo de Néstor Kirchner, o país tentou recuperar a credibilidade com um plano de renegociações desses débitos.
Como foi a renegociação?
Em 2005, o então presidente Néstor Kirchner ofereceu aos prejudicados pagamentos com descontos acima de 70% e parcelados em 30 anos. Ao todo, 92,4% dos credores aceitaram as condições.
O que aconteceu com quem aceitou a renegociação?
Esse grupo de credores tem recebido os pagamentos em parcelas – é a chamada dívida reestruturada.
O que aconteceu com quem não aceitou a renegociação?
Parte dos credores (7,6% do total) não quis receber os valores com descontos e parcelados. Fundos especulativos dos Estados Unidos aceitaram comprar esses títulos desses credores, a preços bem baixos. O governo argentino chama esses fundos de “abutres”, porque, assim como os pássaros, eles “se alimentam de coisas podres”. O que os investidores tentam fazer, agora, é lucrar com títulos de pouco valor e que dificilmente seriam resgatados.
Como a questão foi parar na Justiça dos EUA?
Os “fundos abutres”, com sede nos EUA, procuraram a Justiça do seu país para receber o total dos valores dos títulos, sem descontos ou pagamento em parcelas.
O que decidiu a Justiça dos EUA?
Em 2012, um dos casos recebeu uma decisão favorável da Justiça dos Estados Unidos. O juiz Thomas Griesa determinou que a Argentina deve pagar US$ 1,33 bilhão ao NML Capital e Aurelius, um dos fundos especulativos. O governo de Cristina Kirchner recorreu, mas o Tribunal de Apelações de Nova York também concordou com a decisão de Griesa.
A Argentina recorreu, então, à Suprema Corte norte-americana, que, no último dia 19 de maio, decidiu que o país deve pagar os fundos “abutres”. A Justiça também determinou que a Argentina não pode pagar as parcelas de dívida reestruturada a menos que pague também aos fundos. A decisão também derrubou uma medida cautelar (chamada de “stay”, que significa “parar”) que suspendia os efeitos da determinação judicial anterior.
Qual foi a consequência da decisão?
Para pagar as parcelas já prometidas, a Argentina teria que pagar também o US$ 1,33 bilhão devido aos “fundos abutres”. Sem isso, o país pode ter que dar um calote involuntário nos credores que aceitaram a reestruturação.
“Não dá para dizer que é uma novidade, ou que pegaram a Argentina de surpresa. É quase que uma tragédia anunciada, porque sempre houve risco de ocorrer”, diz José Maria de Souza Júnior, professor das Faculdades Rio Branco.
Qual o tamanho da dívida com os credores que não aceitaram a renegociação?
Segundo o Ministério da Economia argentino, o grupo que não aceitou a renegociação detém 8% dos títulos da dívida pública, que chegam a US$ 15 bilhões.
A Argentina tem dinheiro para pagar a dívida?
Sim. A Argentina possui atualmente cerca de US$ 28 bilhões em reservas.
Por que a Argentina não paga todos credores?
O país não pode pagar os credores que renegociaram por conta da decisão judicial, que a obriga a pagar também os fundos “abutres”. Acatar a decisão e fazer o pagamento aos fundos também poderia abrir uma brecha judicial que permitiria que os credores que aceitaram a renegociação questionassem o país exigindo também o pagamento integral – que o país não tem recursos para efetuar.
Quando vence a próxima parcela da dívida reestruturada?
A próxima parcela da dívida vence em 30 de junho.
Por que a Argentina antecipou o pagamento?
No dia 26, a Argentina anunciou o pagamento da parcela, com depósito de US$ 832 milhões, dos quais US$ 539 milhões foram para contas do Bank New York Mellon, que deveria repassá-los aos credores. O total de US$ 1 bilhão inclui o pagamento de vencimentos em pesos. A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, considera que, mesmo que o dinheiro seja embargado pela Justiça, o país não deu calote na dívida.
O anúncio do pagamento foi interpretado por alguns analistas como uma “estratégia política”. “É uma estratégia para jogar a bola para o juiz Thomas Griesa, que no ano passado decidiu a favor dos fundos especulativos, NML Capital e Aurelius”, disse à France Presse o economista Eduardo Blasco, da consultoria Maxinver. “Parece que querem que Griesa decida se o país entrará em moratória ou não.”
Por que o pagamento da parcela da dívida foi bloqueado?
A Justiça americana determinou que a Argentina só pode pagar os que concordaram com o parcelamento quando também honrar o pagamento dos que exigem receber o valor sem descontos ou parcelas. Em 27 de junho, o juiz Thomas Griesa, dos Estados Unidos, considerou o depósito feito em Nova York como “ilegal” e “não realizado”.
O que acontece se a Argentina não pagar?
Como os recursos do depósito feito pela Argentina foram bloqueados, isso pode configurar um novo calote do país – mesmo que involuntário. Griesa determinou que o dinheiro, depositado no banco New York Mellon, seja devolvido. Se uma solução não for encontrada até 30 de junho (vencimento da parcela), a Argentina terá dado um “calote técnico”. Um seguro feito sobre essa dívida, no entanto, deve ser acionado, o que dará ao governo mais 30 dias para negociar com os “fundos abutres”.
O que acontece se a dívida com os “fundos abutres” for executada?
“Se essa dívida for executada, o contrato prevê que os outros credores que aceitaram a renegociação podem recorrer parar receber nos mesmo termos”, explica o professor José Maria de Souza Júnior. “Neste caso, a conta poderia chegar a R$ 500 bilhões, ao passo que as reservas do país estão hoje em US$ 28 bilhões”.
Quais são as alternativas do governo Kirchner?
Para Souza Júnior, não resta muito a fazer a não ser insistir na negociação ou tentar judicialmente suspender ou protelar a decisão da Corte dos EUA que garante aos fundos especulativos o direito de exigir do governo argentino o pagamento integral de US$ 1,33 bilhão que lhes é devido.
“A Argentina vai tentar protelar judicialmente a execução desta decisão e tentar manobrar politicamente, inclusive em instâncias que não necessariamente tem a ver com a corte americana, como a Organização das Nações Unidas (ONU). Ela vai ter que falar que não tem dinheiro, mas que quer pagar e negociar. Esta é única saída”, diz.
José Niemeyer, Coordenador de Graduação e Pós-Graduação em Relações Internacionais Ibmec, lembra que desde a crise de 2008, quando o dinheiro em circulação diminuiu, os credores estão muito mais impacientes em relação aos vencimentos de títulos a receber. Ele avalia, entretanto, que é exagero falar em risco de quebra. “Quando é uma empresa ou indivíduo que não pode pagar, tem como como partir para uma punição ou falência. Mas em se tratando de inadimplência do estado, o país não vai acabar. Trata-se de um problema macroeconômico que vai ter que ser resolvido, uma vez que há uma dezena de agentes econômicos envolvidos.”
A crise na Argentina pode afetar o Brasil?
Já fora dos mercados dos internacionais, pela baixa credibilidade, o principal parceiro econômico da Argentina é o Brasil, que já está sentindo os efeitos da crise no vizinho. A queda nas trocas comerciais entre os países já ultrapassa 20% este ano. Para conter os dólares dentro de casa, o governo vizinho aperta cada vez mais as importações e fecha as portas para os produtos brasileiros.
“Um calote da China seria mais grave, mas um da Argentina também é grave”, diz José Niemeyer, do Ibmec. “O Brasil é o grande líder da região e a Argentina é importante para o país, temos multinacionais lá e uma linha de comércio grande com o eles. Qualquer crise macroeconômica na Argentina provoca desdobramentos no Brasil”, explica.
Reportagem extraída de http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/06/entenda-crise-sobre-pagamentos-das-dividas-na-argentina.html, acessado em 04 de Setembro de 2014.